Uma visão direta ao ponto sobre o Brasil de hoje— Entrevista Rodrigo Lima (Dead Fish)

A visão que o Dead Fish apresenta em Ponto Cego, álbum mais recente lançado em 2019, é clara: vivemos tempos obscuros no Brasil e é preciso enxergar a treva para combatê-la. Ainda que ver com olhos críticos a situação social na qual estamos inseridos não seja tarefa simples. É por isso que a banda deixou o discurso objetivo e o instrumental ainda mais raivoso. E essa fotografia sonora da atualidade traz uma carga extra de intensidade para quem vê o grupo ao vivo, como poderá ser conferido em Porto Alegre, dia 20 de outubro, no Opinião (Rua José do Patrocínio, 834), às 21h. A apresentação de abertura será do quarteto local Rezalenha.

A temática engajada e contundente sempre esteve presente nos cerca de 28 anos de história do conjunto hardcore capixada. Mas havia nos outros sete discos de estúdio um viés poético, por vezes acompanhado de certo existencialismo, que agora dá lugar a uma narrativa sem rodeios. 

— Subjetividade em tempos de fake news, às vezes, não ajuda muito — explica o vocalista Rodrigo Lima, que contou com a ajuda de um amigo para compor as letras.

Acompanhando a lírica com menos floreios está um instrumental mais direto ao ponto. A parte melódica, marca registrada do DF continua lá, mas o som ganhou peso e aceleração no trampo de Marcão (bateria) e Ric Mastria (guitarra). Na gravação de Ponto Cego, o baixo ficou sob a batuta de Ric, que também foi responsável pelos graves em Vitória (2015) — Ayland, baixista de 1996 a 2018, não tocou no penúltimo trabalho por motivo de saúde. Ao vivo quem assume as quatro cordas é Igor Tsurumaki. 

Conversamos com Rodrigo para entender melhor a proposta do último registro até então. A urgência de estar vivo, a influência da filosofia e da psicanálise, o jogo político e a raiva como instrumento de expressão estão entre os assuntos abordados. Veja a seguir!

Ponto Cego é um álbum mais direto, liricamente falando. O Dead Fish sempre foi crítico em sua temática, mas havia ali algum floreio poético. Deixar o discurso mais objetivo e direto seria uma necessidade dos tempos atuais? Por quê?

Rodrigo Lima — Absolutamente sim. Esse já seria um disco mais direto sonoramente falando. Acredito que o Marco (bateria) e o Ricardo (guitarra) já tinham produzido algo mais com a cara deles e menos com a da nossa escola sonora. Na parte das letras, eu busquei até uma visão menos raivosa do que a minha. Ou com uma raiva diferente para justamente não ficar algo reto demais ou raso demais. É um baita álbum por ser exatamente como é, no meu ponto de vista. Talvez mais por necessidade de momento sim, mas também para trazer algo novo à escrita do DF. Subjetividade em tempos de fake news, às vezes, não ajuda muito. Quem sabe num próximo. Nossa vontade nesse presente é esse álbum, essa fotografia do aqui e agora. 

 

Ponto Cego, no senso comum, é algo que está ao lado, mas não se vê. Mas também pode se relacionar com o psicanalista francês Jacques Lacan. Alguma dessas definições, ou as duas, foram levadas em conta na escolha do título? Como foi o processo para definir o nome do disco?

Rodrigo Lima — Sim, é isso mesmo, exatamente. A gente levou em conta todos os significados possíveis da  expressão para colocar no álbum. Apesar de o disco ser bem direto, o conceito é amplo. De ponto cego do retrovisor ao ponto cego do (Jacques) Derrida, que fala sobre o outro do outro. O ponto cego do Jacques Lacan que é, grosso modo, o inconsciente coletivo, apareceu no fim do álbum com um amigo e minha companheira me alertando sobre. A gente não conhecia o ponto cego do Lacan, mas ele também está ali.

Desta vez, você contou com o auxílio de um camarada para escrever as letras, certo? Já havia trabalhado dessa forma antes? Conta como foi, por favor.

Rodrigo Lima — Sempre tive ajuda dos caras da banda para escrever letras, principalmente os guitarristas, quando tinha alguma questão de melodia ou harmonia. O Álvaro Dutra já tinha escrito uns sons comigo no álbum anterior, o Vitória (2015), e a parceria foi legal. Nosso papo flui e a escrita também. Chamá-lo para me ajudar com as letras foi perfeito porque eu sinto muita raiva de tudo desde 2016, não queria fazer um disco mandando geral para casa do caralho. Até queria, mas precisava de sutileza, uma coisa que perdi muito em quinze anos vivendo em São Paulo. Eu li menos nessa última década, mas vi mais shows e andei mais de skate. Enfim… Ele era o cara para ajudar a dar mais classe verbal ao trabalho, e foi isso que aconteceu. Foi desafiador estar perto dele e ler o que ele me indicava, ouvir pessoas que nunca tinha ouvido para construir o álbum. Acabamos complicando tudo para nos desafiarmos, e acho que até deu certo.

Há urgência em estar vivo, é fato. E ela aumentou depois que você se tornou pai? Por quê? Há, no álbum mais recente, alguma influência da paternidade ou do fato de criar um pequeno ser hoje em dia?

Rodrigo Lima — Eu sinto uma necessidade de estar bem mental e fisicamente depois que a minha filha nasceu, sim. Fui pai um pouco mais tarde e quero poder estar perto nos momentos em que ela precisar de mim ou eu precisar dela, durante muitos anos. Quero ensinar ela a pedalar, quero que ela me conte histórias sobre os cachorros e a irmã imaginária até onde der. No mundo, e no Brasil de hoje, criar uma criança é missão hercúlea se você quer estar presente e dar o melhor para ela. Preciso que ela tenha uma educação maneira, coma direito e ainda por cima não sinta raiva da classe dela tão cedo. Ela precisa ser uma garotinha feliz com a vida o máximo possível e, a o mesmo tempo, não pode cair nessas ideias elitistas burras da classe na qual ela vive, do bairro onde ela mora. Tem de ter inteligência e ser safa para entender as coisas. E eu também preciso ser melhor, ser menos agressivo, ouvi-la mais. É realmente uma supermissão. Não pensei muito na minha paternidade quando comecei a escrever o álbum. Era raiva que me perpassava quando escrevia, não o amor que sinto pela minha cria. Algo deve passar inconscientemente, mas ainda não me ocorre o quê.

O instrumental também tem direcionamento mais pesado que o de costume. Foi intencional para acompanhar a temática do disco?

Rodrigo Lima — Sim, foi intencional. Lá atrás pedi para os caras um disco pesado instrumentalmente e melódico, e eu consegui achar mais notas na voz. Acho que conseguimos. O Marco e o Ric fizeram muito bem o dever de casa. Eu fui muitas vezes aos ensaios instrumentais deles e via o quanto estavam se dedicando — e o quanto estavam se divertindo também. Foi um desafio também para eles.

O Dead Fish geralmente nada contra a maré. E, atualmente, como tem sido ir na contramão do senso comum de que a política estava tão ruim que era preciso mudar, mesmo que essa alteração trouxesse junto uma onda no mínimo questionável na forma de se governar? 

Rodrigo Lima — Muita calma nessa hora. A gente fazia críticas que valiam a discussão. Eu mesmo, pessoalmente, falei muito da Dilma no fim do primeiro mandato e começo do segundo. Eram críticas à forma que ela estava conduzindo as coisas, não sabíamos que a presidente ia se tornar refém dos partidos da base aliada. Eu falava da lei antiterrorismo que ela aparentemente foi coagida a assinar e também de Belo Monte, e toda aquelas cagadas que o governo de adesão, que acho hoje, pessoalmente ela não concordava. É bem diferente de um Aécio da vida ou políticos desse tipo, que articularam um golpe. Aproveitaram-se dos protestos de 2013 para virarem a mesa da forma mais desonesta, mentirosa e preconceituosa que existe. A gente vive hoje o rebote de tudo aquilo que fizeram com nossa democracia, que era falha, ainda fraca, mas era uma democracia. Você nunca imaginaria que iríamos retroceder tanto. Mas acho que subestimamos a ganância das elites brazucas e a situação mundial com a Cambridge Analytica, com apoio de facebooks da vida, para tornar o mundo mais neofascista na base da fake news. Eu era mega desligado disso até a crise de esquerda e direita da banda bater na nossa porta. As coisas mudaram e ainda vão mudar para pior até que melhorem. E mais: não é questionável a nova forma de se governar que existe hoje, é mentira, criminosa, uma farsa total.

Relacionando com a questão anterior, seria essa a tal ‘inevitável mudança’, pegando emprestado o nome da faixa que abre o novo álbum do DF? Na real, a letra desse som traz um caminho inverso, de que é imprescindível a diversidade ganhar protagonismo. Como ser ator nesse contexto?

Rodrigo Lima — Não existe uma saída simples para nada agora que a cagada está feita. A música abre o disco por conta disso. É uma visão otimista das coisas, mas não sem muito diálogo, muita informação e unidade, no sentido de entender que é preciso estar junto contra toda essa agenda genocida liberal caipira tosca. Como ser ator? Cá do meu lado, penso que pode ajudar apostar na molecada que está vindo na música, aceitar as diversidades, pedalar, parar com coerência do carro, consumir menos, aprender muito sobre todo o processo que estamos vivendo todo dia, veganismo, mídia alternativa e progressista de qualquer lugar do mundo e, principalmente, ação. Voltar a ser protagonista, propositivo, falar da desigualdade gritante entre as classes brasileiras, da legalização do aborto, do casamento de pessoas do mesmo gênero, de comida orgânica, de reforma agrária, do racismo estrutural, de feminismo. Existe uma agenda extensa e propositiva para uma vida cotidiana, não só para momentos de eleição. Ao mesmo tempo em que estamos vivendo um grande retrocesso terraplanista pentecostal, passamos por uma superrevolução comportamental, estética, étnica e musical. Estar aqui e agora é muito maneiro por isso. As pessoas precisam ver que isso é positivo, que estamos mudando. E para melhor neste aspecto.

Há quem condene estilos mais agressivos de música. Mas eles são veículos para canalizar raiva e insatisfações, evitando que esses sentimentos se materializem de uma maneira negativa, contra outras pessoas. E não é incomum que detratores de sonoridades menos dóceis sejam também incentivadores do discurso de ódio. Como fazer as pessoas perceberem com quem está o sangue nas mãos?

Rodrigo Lima — Essa é uma pergunta complicada, porque gente é gente. Apenas isso. Ninguém é mais especial ou menor por escolher um nicho cultural e/ou musical para gostar. Pessoalmente, tenho o punk, o hardcore, o grindcore, parte do metal e todas as vertentes intrínsecas, como um meio que cresceu muito — apesar de ser bem restrito, comercialmente falando, no Brasil. Com o tempo acabamos nos segmentando muito e perdemos força. Porém, essas diferenças acabaram abrindo muitas frentes de diálogo, depois dos anos de mágoa mútua que acho que ajudaram a paralisar o nosso direito de sermos um segmento grande e rico em suas bases de contestação e rebeldia. Acho que perdemos força apesar de, sendo bastante passional, sermos o cenário cultural mais legal para se estar, justamente por se autoquestionar todo tempo. Aí, vêm as críticas de gêneros musicais mais comerciais, por serem mais massificados ou por terem mais grana. Isso é uma grande besteira. No fim das contas, quem mudou o mundo foram os contestadores, os que cortaram na própria carne para mostrar que o mundo estava errado e precisava ser alterado. Os ricos são apenas ricos, gente desonesta o tempo inteiro, até consigo mesmos. É apenas sobre grana e tornar as massas meros consumidores como sempre. 

Cá do nosso lado temos direito a sermos o que somos e a termos parte do bolo de relevância, financeiro e artístico. Só que não aconteceu, e provavelmente não vai acontecer, enquanto o sinônimo de cultura for arte adestradora, amansadora das massas.

Cães costumam ser animais servis, obedientes. Acredita que esse é o intuito de governos que achacam a educação, por exemplo, transformando o povo em pobres cachorros?

Rodrigo Lima — Muito! Ter um povo mal-educado, sem direito nem a ser alfabetizado, é transformá-lo em gado, em massa de manobra. Só que também é um tiro no pé para quem quer ter no seu fazendão local oligarca lugares mais ou menos civilizados. Existem elites locais burras no mundo inteiro. Só que no Brasil elas se superam diariamente na própria burrice, como se também fossem extensão do seu plano de transformar tudo e todos em seus cachorrinhos de marca. Até os 1% mais abastados também são pobres cães adestrados.

‘Não Termina Assim’, quarta composição em Ponto Cego, relaciona que a busca desenfreada pelo progresso pode ser o início da política de destruição de direitos que ganha força. Mas também dá o tom de que não podemos aceitar, não podemos deixar que a situação termine assim, sem ir à luta. Como levar essa briga adiante diariamente, dentro das possibilidades de cada um em seus cotidianos cada vez mais atribulados?

Rodrigo Lima — Mais uma que não é fácil de responder. Todos sabem o quanto é complicado viver, pagar contas e, ainda por cima, lutar. Eu tomo como exemplo muito do que vivi com minha avó, que era uma lutadora. Durante toda vida ela foi uma pessoa extremamente doce, mas não menos questionadora. Ela fez o que pôde: educou os netos por ser professora, se doou e se dedicou fazendo o que podia. Não que hoje apenas pequenos gestos vão mudar a situação, mas em longo prazo ajudam, é uma construção pela base todos os dias. O ideal é que as pessoas do Brasil se ligassem e tivessem mais consciência de classe. E, juntos, todos os fodidos desse país lutassem lado a lado. Contudo, isso não está acontecendo neste momento. É marcar território, manter as ideias, trazer os nossos para perto, tentar unificar as causas e lutar sem esperar muito de hoje nem de amanhã. Mas sim do depois de amanhã.

‘Receita pro fracasso’, a música, elenca uma série de situações que podem nos levar à derrota. É possível reverter isso e transformar em uma possibilidade de sucesso (no sentido de dar certo)? De que maneira?

Rodrigo Lima — Tendo plena consciência de que o que temos aqui e agora é a destruição total da democracia e um plano pra manter as elites desse país mais 519 anos no poder. O resto é ação.

Por Homero Pivotto Jr.

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